De ontem e de hoje – Ferramentas
por Licínia Quitério
Gosto de ferramentas, daquelas palpáveis, com nomes de martelos, chaves, parafusos, e mais mil, e tentar fazer uso delas nas reparações das pequenas avarias que vão surgindo nas casas.
Vem este gosto de quando acompanhava o meu Pai nos consertos caseiros, nas inovações de que ele era capaz, e me ensinava nomes e serventias, dando-me mesmo o cargo de ajudante – dá cá a chave inglesa, dá cá duas porcas sextavadas, vês este parafuso, tem cabeça de tremoço. E eu, toda ufana, convencida do meu grande préstimo em trabalhos de adultos e, mais importante ainda, trabalhos de homem.
O certo é que fui treinando as mãos nos gestos de aparafusar, pregar, compor o que estava descomposto, e apurando o gosto por saber fazer.
Não se consegue saber a que filme pertencem, a que livro, a que quadro, a que história que nos tenham contado. Devem ter-se amado loucamente, saltado barreiras, regressado a conveniências, a velhas caixas.
Cresci, o gosto e o jeitinho ficaram comigo, e tornei-me ajudante de outro mestre, não menos engenhoso e apreciador das minhas desusadas inclinações, atendendo ao género e à época. Desse tempo, recordo o dia em que foi preciso instalar novo estendal para a roupa e o meu mestre disse – precisamos de cerra-cabos. Ora eu, que nunca tinha ouvido falar deles, logo ali decidi não perguntar o que eram nem como eram, na minha imaginação surgindo estranhos instrumentos, de medianas dimensões, funcionando sabia eu lá como. Foi na loja de ferragens do senhor Porfírio, que eu adorava frequentar, que percebi o engano, que a homófona me tinha traído, que afinal a tal engenhoca não serrava mas cerrava, o que me fez soltar em voz de espanto – é isto? O senhor Porfírio, porventura sem entender a minha interrogação, limitou-se a dizer – Quer maior? Não temos. Lá trouxe os cerra-cabos, que, bem vi, cerraram na perfeição os extremos das cordas, na tensão requerida.
Esta vivência de proximidade com o saber fazer muito me ajudou quando me encomendaram a tradução do Inglês de um volumoso manual de ferramentas, tantas e tão variadas, que me obrigou a consultar o meu mestre, o senhor Porfírio, e especialistas do ramo, que bem me acolheram, um tanto admirados pelos meus conhecimentos do assunto, sendo eu mulher e escrevente de profissão.
Hoje, com as mãos menos obedientes, ainda me atrevo a utilizar, se necessário, os tesouros da minha caixa de ferramentas, agora maneirinha, mas provida das armas necessárias com que se consertam os desconsertos da casa.
Tenho pena de não saber outras artes de consertar mundos. Talvez noutra vida, noutras vidas.
Quando chegou à reforma decidiu publicar o que escreve.
Tem neste momento publicados seis livros de poesia e três de prosa (contos e romance).
Pode ler (aqui) as restantes crónicas de Licínia Quitério.
O Jornal de Mafra e a DGS Aconselham
Mantenha-se protegido
Cuide de si, cuide de todos!